12.3.15

O apedrejamento do século XXI


Quando estou reunido com algum grupo de adultos, sempre lamento quando o assunto muda subitamente para o crime sórdido sobre o qual algum deles lia no jornal. As expressões de todos mudam: os rostos se contorcem, alguns lamentam o excesso de brandura das penas brasileiras e, às vezes, um mais ousado sugere punições com descrições meticulosas e brutais. A cena é comum.

Comum e antiga. Quando presencio os exemplos mais exaltados, com xingamentos e golpes de desabafo na mobília, fico com a impressão de que a única diferença entre aquele episódio e um apedrejamento são as pedras. O jornal sensacionalista é o apedrejamento do século XXI. Não é um fenômeno humano raro, podemos encontrar paralelos em quase todas as sociedades. Na Grécia Antiga, em tempos difíceis, de doença ou fome, os sacerdotes escolhiam um pária (chamado de pharmakós) para ser excluído da cidade¹. Na Idade Média, haviam decapitações em público e um tipo particular ficou famoso durante a Revolução Francesa, a guilhotina. A maioria dessas execuções era acompanhada por uma multidão que esbravejava contra os sentenciados.

Nos tempos modernos, quem cumpre essa função é principalmente o telejornal sensacionalista. Acredito que um dos motivos é uma espécie de gosto literário: os crimes escolhidos pela mídia e pela audiência se desenrolam como num romance policial, os telespectadores aguardam por novas pistas e evidências que incriminem o antagonista e vindiquem a vítima. Mas não acho que esse seja o maior motivo.

A causa principal me parece ser aquela que Contardo Calligaris expôs num artigo publicado na Folha há alguns anos.² Ele diz que o que faz as pessoas se envolverem nesse tipo de comportamento é a necessidade de se diferenciar: os alemães na Noite de Cristal queriam afirmar que não eram judeus, os racistas que linchavam negros nos Estados Unidos queriam reafirmar sua separação da população de ascendência africana, o povo da Oceania participava dos Dois Minutos de Ódio para assegurar-se de que não tinha sentimentos contrários ao Partido como aqueles declarados pelo rosto projetado na tela.

Porém, pode parecer inoportuno tratar de um tema desses num blog cristão, afinal, muitas dessas demonstrações de ódio foram promovidas por cristãos ao longo dos séculos – o arquidiácono do Corcunda de Notre-Dame vem à mente. Não acho que seja o caso. Primeiro porque tomar parte nessas práticas, não importa como a pessoa se auto-denomine, vai contra os próprios ensinamentos de Cristo. Jesus é um dos mais famosos opositores desse comportamento. Ele colocou a frase “quem nunca pecou que atire a primeira pedra” na língua popular. Além disso, foi veemente reformador de outra expressão comum em seu tempo, “olho por olho, dente por dente”. Ele dizia que se alguém nos batesse no rosto, devíamos oferecer-lhes o outro lado, não porque Jesus ignorava a justiça mas porque Ele enfatizava a humildade e a misericórdia. Sua doutrina ensina que se reconhecermos como nós mesmos somos ruins, tendemos a ver a falha alheia não com olhos de condenação mas de compaixão.³

Acredito que seja esse o principal defeito do sensacionalismo de casos policiais. G. K. Chesterton diz que uma das frases mais famosas de Thomas Carlyle era que os homens eram, na maior parte, tolos. Já ele fala que “o Cristianismo, com um realismo mais seguro e reverente, diz que todos são tolos”⁴. Não adianta insultar os vícios dos criminosos da tevê com impropérios analgésicos. Apontamos a falha dele para dizermos para nós mesmos que somos diferentes, que não falhamos. Acusamos para nos sentirmos absolvidos. Proponho um exercício diário diferente: ao invés de negar a nossa falibilidade, devemos aceitar essa verdade. Ao invés de desviarmos dos nossos defeitos todos os dias, devíamos corajosamente os reconhecer. C. S. Lewis diz que “se você procurar a verdade, pode encontrar consolo no fim: se procurar consolo você não terá nem a verdade nem o consolo – apenas bajulação e esperança vazia e, no fim, desespero.”






1: Entrada para pharmakos na Enciclopedia Britannica
2: Artigo de Contardo Calligaris para a Folha
3: Ver Mateus 18:21-35
4: Grifo meu.

1.5.14

Arte Feia



Tudo bem que eu sou uma pessoa fácil de se revoltar. Mas ontem eu li numa revista – não pela primeira vez, infelizmente – que a arte feia é mais honesta, porque não foge de retratar a feiúra que já está na sociedade. Ela não se esconde das injustiças, dizem. Para mim, parece que qualquer pessoa simples acharia isso um absurdo, afinal a humanidade não produz beleza porque quer esconder a feiúra, produz beleza justamente porque quer combater a feiúra. Para o meu alívio, não estou sozinho, tem umas pessoas simples de quem eu gosto bastante que provavelmente compartilhariam da minha indignação. A Adélia Prado, numa palestra incrível de que eu sempre falo, diz que "beleza não é luxo, é necessidade". A beleza não aliena as pessoas, segundo a poeta, "é o contrário, ela traz para o real". O C. S. Lewis, então, diz o seguinte dos advogados do feio: "eles nunca arrumavam nada, ao contrário, só destruíam. Quando encontravam um prato sujo, eles não o lavavam, mas o quebravam; quando as suas roupas estavam sujas, queimavam-nas."*. A gente pode achar que dá para combater a feiúra do mundo com mais feiúra, mas, nesse caso, parece que a melhor resposta é mesmo aquela mais óbvia, quer dizer, quando abdicamos do belo, só o que estamos fazendo é abrir mão da única coisa que poderia realmente nos salvar.

* The Pilgrim's Regress, edição de 1992, p. 144. Tradução nossa.

8.4.14

Batalhador


Prefiro a grande música de Deus porque me parece que, fora, só encontro a frieza da vitória.

22.2.14

A sabedoria num tubo de ensaio


Hoje, há poucos temas que tenham se tornado tão delicados quanto a moral. Salvo em circunstâncias especiais, admite-se que toquemos nesse assunto apenas indiretamente, raramente como o tema principal de livros ou conversas. E, caso realmente tragamos o assunto à tona, se for em forma de livro, recebe o rótulo de auto-ajuda e, se amigo numa roda de papo, a alcunha de moralista.

Mas, como dito acima, em algumas circunstâncias especiais, podemos tratá-la sem problemas. Dois campos têm essa permissão: as teorias sociais e as ciências. Tudo bem que as duas nem sempre levem a sério o que a outra diz, mas, tratando o assunto de forma mais geral, podemos dizer que essas duas áreas têm o respeito de muita gente – basta assistir ao noticiário para ver quantas vezes a tevê não chama esses profissionais para dar uma credibilidade extra a alguma afirmação. No campo das teorias sociais, a moral pode ser tratada, por exemplo, pelo marxismo, que explica que a ganância competitiva nas empresas é uma consequência do sistema capitalista; ou pela sociologia, que explica que as injustiças sofridas pelas mulheres são resultado da cultura patriarcal que ainda nos cerca. Já nas ciências, a abordagem é, como convém, um pouco mais concreta, com medições, exames de sangue e saliva. Elas explicam que a maior agressividade dos homens é causada pela testosterona e que traços como uma melancolia pessimista podem ser motivadas pela falta ou excesso de algum neurotransmissor.

Apesar do saudável debate ocorrendo nas ciências e teorias sociais, acredito que um tipo diferente de discussão moral não tem recebido a devida atenção de todos, a sabedoria. Sim, pois me parece que nem a sociologia nem a psicologia evolutiva ajudam tanto quanto gostaríamos na hora em que precisamos, digamos, saber como lidar com a morte de alguém próximo – mesmo que, talvez, sejam as únicas ferramentas necessárias a alguns Quincas Borbas e Sheldons Coopers. Vejo isso o tempo todo, as pessoas podem ter lido numa revista que o perdão faz bem ao corpo, mas praticá-lo com propriedade está infinitamente distante de conhecer seus benefícios à fisiologia. Quando devemos oferecer ajuda e quando devemos deixar que o outro cresça por si mesmo? Quando é desabafo e quando é fofoca? Quando devemos escolher a coragem combativa e quando a espera paciente? São questões, por exemplo, com que eu trombei em inúmeras conversas e que raramente vejo impressas ou discutidas seriamente. Mas talvez minha definição de sabedoria ainda esteja muito vaga. O que tenho em mente é algo como a retórica dos antigos, a sabedoria tão fora de moda praticada por gente como Quintiliano ou Sêneca. O que advogo é o direito de alguém escrever sobre moral, sem ser necessariamente teórico ou científico, talvez possamos ser apenas humanos falando sobre aquilo que temos de mais humano, nossa integridade.

Porém, alguém pode dizer que isso não é necessário, que o conhecimento mais acadêmico pode ajudar com todas as questões difíceis da vida sem o menor problema e, apesar do tom mais duro que eu usei um pouco antes, entendo esse posicionamente. No próprio exemplo acima, o da morte, poderíamos dizer que uma pessoa irreligiosa encontra conforto na ideia do materialismo, influenciada pelas descobertas da ciência, defendida por inúmeros pensadores das Humanidades e que diz que a morte do corpo é apenas o fim, somos apenas matéria, "imagine there's no heaven (...) no hell below us"¹, como sugere o John Lennon. Mesmo que ele encontre consolo real ali, ainda acho que há espaço para uma sabedoria não-teórica. Até porque o discurso de sabedoria que defendo aqui não seria apenas uma voz que discorda da ciência ou das teorias sociais, muitas vezes o sábio e o teórico podem concordar. Deixo o G. K. Chesterton, no seu estilo combativo habitual, explicar melhor o que eu quero dizer:
Perceber-se-á que a velha eloquência agora é evitada – não tanto porque era artificial quanto porque era real. A retórica não desagradava os homens porque o seu estilo era ornado, mas porque o seu sentimento era simples. Acontece que a retórica tem um modo atraente de colocar verdades muito claras ²
Chesterton coloca bem o problema. Os sábios da Antiguidade não diziam verdades inéditas, mas diziam-nas com um sentimento claro, pertinente àquele momento, quase como profetas, repetindo as velhas virtudes, denunciando os vícios do povo ou dos poderosos.

Mas sem conseguir encontrá-la no âmbito "sério", as pessoas procuram essa sabedoria simples da retórica clássica em outros lugares. Ela tem permissão, por exemplo, para estar na arte porque esta pode ser tomada como uma expressão de subjetividade, sem pretensão de verdade. Robert McKee diz que "Tradicionalmente a humanidade procurou a resposta para a pergunta de Aristóteles nas quatro sabedorias – filosofia, ciência, religião, arte – tirando luz de cada uma para montar um sentido de acordo com o qual possamos viver (...) [mas] à medida que nossa fé nas ideologias tradicionais diminui, voltamo-nos para a fonte em que ainda acreditamos: a arte da história.". ³

Mas procurar respostas na arte certamente não é a pior das consequências da marginalização da sabedoria. Um gênero preencheu essas lacunas mais que todos os outros: a auto-ajuda. Ali, os preconceitos que impedem que os conselhos morais cheguem aos círculos mais prestigiados não atuam, os autores de auto-ajuda não estão preocupados com sua reputação junto à elite intelectual. Ela funciona de acordo com a lógica do mercado, ela simplesmente anuncia um bem (a ajuda com algum problema) e as vantagens em adquiri-lo (a rapidez ou a eficácia com que o problema será solucionado). Não que eu ache que as leis de mercado sejam inerentemente ruins, elas vêm apenas sanar um problema que deveria ter sido tratado por algo mais competente, como um pai que terceiriza a educação dos filhos.

Por isso, quando alguém fala seriamente em moral pode ouvir que está só propagando auto-ajuda. Mas esse ainda não é o último rótulo possível. Outro muito comum e cuja resposta demoraria pelo menos outra postagem inteira para abordar é a acusação de intolerância. Alguém pode dizer que a moral é relativa e que dar conselhos morais com pretensão de verdade como faziam os antigos pode transformar-se, na melhor das hipóteses, em alienação e, no pior cenário, em uma forma de opressão. Eu discordo por inúmeras razões, mas para não me alongar, posso dizer apenas que não estou sozinho. Hoje, na Academia, não é tão comum quanto se pensa dizer que a moral está totalmente no âmbito da escolha pessoal, como vemos nesse trecho de um curso do professor Shapiro, da universidade de Yale. Cada vez menos acadêmicos acreditam no relativismo moral.

Portanto, se, na academia, voltou-se a acreditar que existem verdades morais e voltou-se a debater a respeito de quais seriam elas, esse tipo de conversa precisa chegar até as pessoas. A arte continua oferecendo-nos grande consolo e ensinamento, e a ciência dá-nos subsídios sólidos para algumas das discussões, mas ainda há lugar, na verdade necessidade, de um discurso claro que dê conselhos sábios sobre como lidar com as nossas dores e como responder à pergunta que Aristóteles fez na Ética: "como devemos viver?"

1 - "imagine que não há Céu (...) nenhum inferno abaixo de nós", traduzido do inglês.
2 - The Rhetoric of the Peacemongers, The Illustrated London News, 13 de outubro, 1917.
3 - Story, p. 11-12. Traduzido do inglês.

4.2.14

A Partida


Ontem assisti 'A Partida' (Okuribito), um filme japonês meio brega, mas simplesmente incrível, que me lembrou de duas citações. Na primeira, o G. K. Chesterton diz que "aquele medo miserável de ser sentimental (...) é o pior de todos os terrores modernos" e, na segunda, o Robert McKee fala que "as obras asiáticas (...) agora viajam pela América do Norte e o mundo, tocando e cativando milhões, roubando a cena internacional com facilidade por uma razão: cineastas asiáticos contam histórias incríveis.". O filme não tem nenhum dos dois medos, do sentimentalismo ou de uma história contada da maneira mais tradicional. E é lindo pra caramba.

23.8.13

Amargor


A ironia é como o amargo do queijo. Quando há um pouco, concluímos que é um queijo excelente; quando há demais, percebemos que está podre.

20.8.13

Ao pé da lareira


Assisti uma palestra de um Christopher Mitchell sobre a amizade entre o C. S. Lewis e o J. R. R. Tolkien e, apesar de não ser das falas mais eloquentes que eu já ouvi, fiquei satisfeito principalmente porque ele saciou a minha curiosidade sobre a relação dos dois. Além disso, ele colocou juntas duas citações de um jeito genial, se não pelo bom gosto, pelo menos pelo inusitado. A primeira é da Virginia Woolf falando a respeito do T. S. Eliot e a segunda é do C. S. Lewis falando do seu grupo de amigos.

Tive um encontro dos mais vergonhosos e perturbadores com o caro e pobre Tom Eliot, que pode ser considerado morto por todos nós deste dia em diante. Ele tornou-se um anglo-católico, acredita em Deus e imortalidade e vai à igreja. Eu fiquei realmente chocada. Um cadáver teria parecido mais crível a mim do que ele era. Quero dizer, há algo de obsceno em uma pessoa viva, sentada ao pé da lareira, acreditando em Deus.”

O que eu devo a eles é incalculável... Há algum prazer na Terra tão grande quanto um círculo de amigos cristãos ao pé de uma boa lareira?”

17.8.13

Afago


Estava no ônibus quando
pensei em meu gato, que dorme
roncando, todo torcido.

Às vezes, acordo-o e invento
um bom tanto de despeito
no seu olho que é só felino,

Então, não peço desculpa,
bagunço os pelos dele
bem ali, atrás do ouvido,

Sem nem saber, ele dorme
mais feliz que antes, soltando
muitos erres e uns lambidos.

Sozinho no banco do ônibus,
com sono, olhava pro azul
que me soprou um afago, retribuindo.

Ídolo exaltado


Ama, moleque, ama!
Assim não, menino, chama-na de eleita,
vira, assim, mais para a direita,
presta atenção, tira essa poesia do ouvido,
escuta, pelo que o mundo é movido?

– Ouço só homens com a boca cheia
de carne de gente
gritando contra aqueles que em seus calcanhares
fincaram os dentes.
Os mais ferozes recebem o mais alto louvor
e dizem que amor
é quando a fome de companhia que se sente
alivia-se escolhendo um só na arena
para não chamarem de oponente

– Não, não; não sejas profano,
o Amor a Deus não é o primeiro mandamento,
Vênus é a maior dos olimpianos.
Tua amada não é bela amiga na vida,
é tua existência toda, a todo momento;
teu deus, tua perpétua alegria.

– Tudo?
Ela é a presença mais desejada,
quando deixo a couraça,
rio e amo, enfim em casa.
Mas Vênus é bela exatamente
porque não se dá a fingir-se solene.

– Não, não, preenche tudo, rapaz.
– Ah... Assim?
– Não.
É.
Agora sim. Assim. Eu gosto assim...

Isso... Isso... Muito bem... Continua...
Quero que os olhos e os ouvidos cerres,
E o mundo será aquele que escolheres.

18.1.13

Poesia Moderna


A poesia moderna é muito difícil para eles. É inútil queixar-se; uma poesia assim tão pura deve ser difícil. Os poetas também não podem reclamar se não são lidos. Quando a arte de ler poesia requer talentos apenas um pouco menos exaltados que a arte de escrevê-la, os leitores não poderão ser muito mais numerosos que os poetas. Se você escreve uma peça para o violino que apenas um músico em cem é capaz de tocar, você não pode esperar ouvi-la com frequência. A analogia musical, então, não se mostra tão remota. A poesia moderna é tal que os cognoscenti que a explicam podem lê-la de maneiras inteiramente distintas. Não podemos mais aceitar apenas uma dessas leituras ou então todas estarão 'erradas'. O poema, claramente, é como uma partitura e as leituras como performances. Diferentes interpretações são admissíveis. A questão não é qual é a correta, mas qual é a melhor. Os explicadores são mais como maestros de uma orquestra do que membros da plateia.

C. S. Lewis

Trecho traduzido de An Experiment in Criticism, p. 98. Nova York: Cambridge University Press, 2012.

26.12.12

Natal ontem

 
Tem gente que não gosta do Natal. Eu já estou com saudade de ter por perto aquele pessoal que fica sumido o ano todo (ou aquele pessoal que não tenho a decência de visitar nem uma vez no ano), todo mundo de pernas para o ar, aproveitando todo aquele tempo livre juntos, aquele tempo que não serve para mais nada, só para ficar olhando as horas passando em companhia rara. Me chamem de preguiçoso, mas acho que as horas mais inúteis são as mais legais ;)

14.12.12

A meus primeiros formandos



Formandos do Ensino Fundamental de 2012, quando eu comecei a dar aula, confesso que eu estava com medo, e uma das primeiras turmas para quem eu dei aula foi a de vocês, então talvez alguns, mesmo que na época vocês fossem muito novos, ainda lembrem disso. Minha esperança quando eu virei professor era a de ser para vocês pelo menos a mesma coisa que os meus professores foram para mim: de todos os meus mestres de quinta a oitava série, eu lembro da cara de uns três, então se vocês pelo menos lembrarem da minha cara e das minhas piadas ruins daqui a alguns anos, já vai ser muito mais lembrança do que eu tenho. Depois que eu descobri isso, tanto as aulas como esse discurso, tudo ficou mais fácil. Claro que eu não estou acusando os meus professores da época, a culpa é da minha péssima memória mesmo, além do mais, como a J. K. Rowling diz em um discurso, não a respeito de professores, mas de pais, culpar os mais velhos tem data de expiração.

Esse discurso, inclusive, foi um dos poucos que eu ouvi e que fez alguma diferença para mim e um dos poucos de que eu lembro até hoje. Antes de qualquer coisa, a Rowling, para quem não sabe, é a autora da série Harry Potter, e para mim, ela fez muito mais do que me dar um apelido que usaram para me zoar a vida inteira. Eu cresci junto com o Harry, eu e o personagem do livro tínhamos idades muito próximas conforme os livros saíam, e foram os livros da Rowling que me ensinaram a gostar de ler de verdade. Hoje, ela me ajudou de novo porque eu me baseei muito no discurso que ela deu para os alunos que estavam se formando em Harvard para fazer o meu.

Uma das coisas que a Rowling diz é que ela queria  ensinar para os formandos o que ela gostaria de saber quando ela era nova. No meu caso, eu ainda não tenho experiência o suficiente para dar esse tipo de conselho para vocês, mas como o Newton subindo nos ombros de gigantes, eu posso trazer um pouco do conhecimento de pessoas muito mais sábias que eu para que talvez elas possam ajudar vocês tanto quanto me ajudaram.

Bem, então, o que eu queria que tivessem me dito quando eu tinha a idade de vocês? Mais uma vez, eu repito o conselho da Rowling: para ela, a coisa mais importante que ela aprendeu tem a ver com o fracasso, como lidar com o fracasso e o que o fracasso pode te ensinar.

Às vezes, o fracasso é daquele tipo que não é culpa de vocês, é culpa de tudo que está em volta de vocês. Alguns fracassos nas suas vidas são causados pelo governo, pela família, pelo estado do país e mesmo pela escola. Outro dia estava assistindo uma palestra de um educador na Internet que falava como a escola reprimia certos talentos. Ele diz que entende o valor da matemática e do português, por exemplo, mas por que não dar o mesmo valor a coisas como a dança? Ele conta o caso de uma menina que não conseguia parar quieta em lugar nenhum, em casa ou na escola; quando foi levada ao psicólogo, ele fez algumas perguntas a ela e chamou os pais para conversar. Ele apontou para a menina rodopiando perto do rádio e falou “sua filha não é doente, é uma dançarina”. A menina era Gillian Lynne, famosa diretora e coreógrafa da Ópera Nacional Inglesa e da Ópera Real. Acho que casos como esses existem em todos os lugares. O mundo não é perfeito e é tarefa de todos nós tentarmos torná-lo um lugar melhor para que essas coisas não aconteçam, para que todo mundo tenha mais ou menos a mesma chance de desenvolver seus talentos.

Coisas parecidas já aconteceram com muitos de vocês. Vocês nasceram no Brasil, fora do centro das atenções do mundo. Vocês não nasceram nos bairros mais ricos da cidade. Mas vocês não podem fazer nada a respeito disso, a respeito do já passou, voltando ao discurso da Rowling: “culpar os pais por te colocarem na direção errada tem prazo de validade, quando você é adulto o suficiente para pegar o volante, a responsabilidade é sua.”

E então chegamos num tipo muito mais interessante de fracasso, aqueles que são culpa de vocês. E também é agora que posso explicar porque escolhi um tema tão negativo para uma fala de formatura.  Primeiro, porque eu acho que uma das coisas mais importantes que a gente tem que aprender é admitir o quanto de culpa que cada um tem no próprio fracasso, eu acho impressionante quantas pessoas dizem que “ninguém é perfeito” ou “ninguém está certo o tempo todo” e mesmo assim não conseguem admitir que estão erradas nunca. Vamos fazer um exercício, tentem pensar em quando foi a última vez que você pensou “é verdade, eu estou errado.” E não vale dar respostas como “o tempo todo”, estou falando de algum exemplo de verdade, quando foi a última vez que você brigou e depois percebeu que a culpa era sua, que era você quem estava errado naquela briga? Eu acho que encontrar as próprias falhas é o primeiro passo para a sabedoria. C. S. Lewis, o meu escritor favorito diz o seguinte: “de todas as pessoas esquisitas no seu trabalho ou na sua casa, só tem uma que você pode realmente melhorar.” Se você quer uma vida melhor do que a que você tem hoje, o primeiro passo é perceber o que está ruim. Claro que é muito mais fácil falar do que fazer, mas a gente precisa tentar, o Lewis fala que se você “procurar consolo, você não terá nem a verdade nem o consolo – só bajulação e esperança vazia e, no fim, desespero.”. Então, não tenham medo de admitir os seus erros e eu digo por experiência própria, no fim, é libertador. E quando você encontra um grupo de pessoas libertas do “eu estou sempre certo” é mais gostoso ainda, as risadas são mais relaxadas porque ninguém acha que você vai ficar ofendido por bobagens, você amadurece e o amor  pelo outro fica muito mais forte quando você percebe que está tão cheio de defeitos quanto todo mundo.

Outro lado do fracasso que precisa ser enfrentado é o medo que ele gera. Vocês estão numa fase da vida em que um monte de possibilidades aparece para vocês, e a maioria delas oferece um risco. Acho que, nesse ponto, a coisa mais importante que eu posso dizer para vocês sobre o risco do fracasso é que vocês não precisam ter tanto medo dele. Primeiro porque todos nós fazemos besteira, a Rowling diz que “é impossível viver sem falhar em alguma coisa, a não ser que você viva com tanto cuidado que você não vai ter vivido nada – e nesse caso, você falha por tabela.”

Claro que eu também não acho que vocês deviam pular para os outros extremos como viver com preguiça: “eu não tenho medo do fracasso, por isso eu não faço nada” ou então “eu não tenho medo do fracasso por isso que faço tudo sem pensar.” Não é à toa que os seus pais e os seus professores se preocupam se vocês vão conseguir um bom emprego ou se vocês vão conseguir entrar numa faculdade, o mundo raramente perdoa sonhos que a gente persegue sem um pouco de prudência.

Mas por que temos tanto medo do fracasso? Acho que é só porque a gente quer muito a felicidade. Felicidade, aliás, é uma das palavras que eu acho que mais engana as pessoas. Digo isso porque quando você pergunta para muitas pessoas o que é felicidade ou quando elas vão ser felizes, a resposta que você ouve é normalmente alguma coisa como “vou ser feliz quando tiver X ou Y” ou então “felicidade é ter isso ou ser aquilo.” Quer dizer, as pessoas ficam felizes quando elas conseguem o que elas querem. A Rowling diz o seguinte: “Se me dessem um Vira-Tempo, eu diria para a minha eu de 15 anos que felicidade pessoal é saber que a vida não é como uma lista de compras ou conquistas. Suas qualificações, seu currículo, não são a sua vida, apesar de que você vai conhecer muitas pessoas da minha idade e mais velhas que confundem as duas coisas.”.

Bem, como eu disse, a palavra felicidade é um pouco estranha para mim porque me faz lembrar de toda essa pressão para ser rico e bem-sucedido, então, eu tenho que terminar a minha fala desejando uma coisa diferente para vocês. Uma palavra que, eu admito, é até bem parecida com felicidade, é alegria, e é isso que eu prefiro desejar para vocês, não uma vida cheia só de dinheiro, casas, carros e festas (apesar de que não há nada de errado nessas coisas). Jesus dá um conselho que eu acho que serve muito bem para todo mundo, mesmo os que não são cristãos, ele diz: “Os olhos são a lamparina do corpo. Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz. Mas se os seus olhos forem maus, todo o seu corpo será cheio de escuridão.”. E é isso que eu desejo para vocês, que vocês consigam ver a luz das coisas, ver a beleza do almoço em família todo fim de semana, que vocês percebam a poesia na risada dos seus amigos, que você reconheça a alegria que sua namorada sopra em você em cada beijo. Então, acho que o melhor que eu poderia desejar é que vocês estejam com as melhores pessoas e acima de tudo, sejam as melhores pessoas que puderem. Espero que eu tenha conseguido ensinar alguma coisa de útil para vocês. Eu desejo a todos vocês vidas muito boas.

14.3.12

Cume


Mesmo que todos digam o contrário
Mesmo que ninguém acredite que você possa vencer
Não dê ouvidos, não são teus amigos, são adversários
Acredite em si


Eu cri
E subo o monte
Saltarei as pedras e os penhascos
E do alto
minha boca rebentará  de glórias e louros


E dirá "ninguém,
ninguém acreditou em mim!
Mas eu venci! Sozinho!"
Sozinho...

***

E, já no topo do cume mais alto,
Olhou para sua plateia
E viu todos escalando, cada um a sua montanha
Sozinhos

20.5.11

“Bits e Pergaminhos”?


Ficamos mais experientes com o tempo. Vivi o suficiente para conhecer não só o significado objetivo dessa frase mas também o subjetivo. Hoje vejo a vida de um jeito diferente, mais prudente: sou obrigado a ver os perigos com os quais não me preocupava antes porque meus pais me protegiam; e só percebi que eram de verdade e não um dos bichos-papões que eles me inventavam porque os conheci pessoalmente.

Mesmo mais experiente agora, não digo que as coisas da adoslescência  eram todas bobas. Meu altruísmo hoje é muito mais protetor e prudente - como o dos meus pais antes de mim - mas isso não quer dizer que o meu altruísmo utópico de outrora seja estúpido porque era adolescente, pelo contrário, inépcia é o conformismo preguiçoso de alguns adultos; só espero poder ser como o Chesterton: "cresci e descobri que aqueles velhos filantrópicos estavam dizendo mentiras. (...) Ora, eu não perdi meus ideais nem um pouco; minha fé nas verdades fundamentais é a mesma que sempre foi."*

Também digo essas coisas para elogiar não um relativismo mas uma sensatez em relação ao que passou. Acho que não devemos pensar no passado - tanto o pessoal como o da humanidade - como se ele fosse um valor, positivo ou negativo, devemos vê-lo como uma realidade complexa de onde podemos tirar coisas boas e ruins. O mesmo vale para a ilusão da mudança total  da sociedade, acho-a uma má ideia porque acabamos substituindo vários acertos passados por equivalentes inferiores – o que, naturalmente, não significa que não hajam também erros passados para consertarmos agora.

Por isso não sou saudosista, conservador ou futurista. Sou a favor de ouvirmos tudo e ficarmos com o que é bom.

* G. K. Chesterton. Ortodoxia, editora Mundo Cristão, p.77